quarta-feira, 5 de julho de 2017

O Avião da Sadia

Uma Travessia na Alpha-Ômega

Julio Fiori
A seguir O Avião da Sadia, 8º capítulo desta história contada em 10 capítulos, escrita para esclarecer alguns mistérios da Serra do Marumbi e aprofundar outros, onde alguns personagens, lugares e acontecimentos são reais enquanto nomes, datas e outros tantos acontecimentos são fictícios. Tudo junto e misturado durante uma hipotética Travessia Alpha-Ômega.

Leia antes os capítulos: 1 -  A MARIA FUMAÇA,  2 -  A CACHOEIRA DOURADA,   3 -  A TRILHA,   4 -  O SOCORRO,   5 -  A ALDEIA,    6 -  A TEMPESTADE  e 7 - O ACAMPAMENTO FANTASMA.



- Hoje só estamos de passagem João, o carro retorna daqui.

O rapaz fecha o portão um tanto decepcionado com o não pagamento da taxa de estacionamento cobrada na porteira do sítio para aqueles que sobem à montanha nos fins de semana e feriados.

- Bom dia Seu Julho! – o sempre amável Dirceu, dono da lanchonete - Estava falando justamente do Senhor.

- Espero que falando bem Dirceu, afinal sou um bom sujeito!

- Só bem, estava mostrando as fotografias do avião. Vai ao avião hoje? Meu filho gostaria de ir também se não atrapalhar.

- Atrapalha não, mas precisará retornar sozinho porque vamos varar a serra até Morretes.

- Então fica para uma próxima vez, é perigoso andar sozinho pelo mato!

- Isto é fato Dirceu, mas o que aconteceu com o João? São quase oito horas e ainda não está de pileque!

- Virou crente como quase todo mundo por aqui e não bebe mais!

- Mas isto é muito bom pra ele!

- Sei não, bêbado ele era mais divertido e enchia menos o saco dos clientes do que agora com a Bíblia na mão. É capaz de fazer falir meu negócio!

- Daí você monta uma igreja e fica rico, prazer em te ver Dirceu, mas precisamos andar. Na próxima vez levo o moleque, um bom fim de semana pra vocês!

Sem mais tempo a perder iniciam a subida do Morro do Canal com as cargueiras nas costas e o sol fritando os miolos. Degraus, pontes e correntes afloram quase que naturalmente das rochas mesmo nas inclinações mais insignificantes. O interessante é que nem toda aquela parafernália artificialista evita os constantes desvios pelas beiradas. Alguns distantes poucos centímetros da pedra toda equipada com degraus de aço. 

Com os músculos ainda frios, apesar do corpo quente, a alta temperatura faz o suor escorrer às bicas e chega àquela sensação de que estão fora de forma, muito aquém do que a situação exigirá mais à frente. Suas mentes são atacadas pela dúvida, mas a experiência os ensinou que basta respirar e caminhar para completar toda e qualquer travessia.

Depois de 40 minutos de escalaminhada chegam ao cume juntamente com um bando barulhento de moçinhas que havia partido sem carga muitas horas antes. Descansam ao sol atormentados pelas moscas e por fim as butucas os puseram para correr em direção a Torre do Vigia pelos labirintos no cume do Morro do Canal até descer numa bonita e profunda greta. 

A montanha parece uma broa partida a faca e o primeiro seguiu para baixo enquanto o segundo procura a trilha na direção contrária e minutos depois, no caminho correto, já descem um paredão vertical de uns doze metros agarrados a uma corda fixa com os pés entalados numa fissura da rocha. Dali ao cume do Vigia foi só um instante apesar da confusão de caminhos que se apresentam e param alguns minutos para respirar apreciando a maravilhosa vista da represa com a cidade esparramando-se até o horizonte. É o último mirante aprazível que terão antes do anoitecer e brindam isto com suco natural de goiaba.

Cruzam por sobre a pedraria e definitivamente se embrenham no mato descendo suave até o fundo do vale, no riacho. Um gole d’água levemente aromatizado com goiaba para espantar a sede e pouco depois passam pelo cume do Ferradura, descendo abrupto pela encosta oposta. No vale escuro e fresco, param para respirar e reidratar com mais calma antes de enfrentar a subida do Morro Negro.

Retomam a linha direta e quase vertical estabelecida numa incursão prévia, escalando por raízes aéreas e terreno instável precariamente preso às pedras na lateral de uma cachoeira por onde corre um fio d’água cristalina. No crux passaram para o centro da cachoeira escalando um 3º grau com botas de trekking molhadas e cargueiras.

O Julio subiu os 4 metros da pedra e jogando a perna direita sobre uma bola de terra sustentada por uma raiz na borda oposta para a última passagem em diagonal sobre a cabeceira da cachoeira, ao largar o apoio, ouviu um estalo e o mundo ficou preto. Desceu ralando pelas afiadas agulhas de quartzo expostas pela ação da água na superfície da pedra, indo descansar os ossos na primeira saliência abaixo, de cabeça para baixo, soterrado por um cobertor de lodo e precariamente entalado numa pequena saliência da pedra que o sustenta para não despencar outro tanto. Esperou imóvel até recuperar o fôlego e o companheiro descer para ajudar a se levantar enquanto via a água tingida de vermelho correr pelo degrau seguinte.

Estava coberto de lodo e o sangue brotava abundante daquela sujeira. Seu companheiro ficou muito abalado enquanto lavava as feridas na procura por alguma fratura. Propôs que voltassem. De alguma forma toda aquela adrenalina bloqueava a dor, mas esta proposta do amigo o fez perceber que a coisa tinha sido séria, muito séria mesmo.

Aos poucos a água foi mostrando o real estrago, nenhuma fratura, mas tinha extensas esfoladuras nos dois joelhos e no cotovelo esquerdo. No cotovelo direito tinha um corte de aproximadamente 1,5 cm que chegava ao osso e jorrava sangue. Julgou que ainda poderia suportar o tranco e partiu para cima enquanto o corpo estava quente e a adrenalina alta.

Passam direto pelo cume do Morro Negro, sem se desviarem para ver os restos do avião sinistrado numa longínqua manhã de sexta feira. Chovia torrencialmente sobre a Serra do Mar nas proximidades de Curitiba, quando o turbo hélice operado pela Sadia (depois Transbrasil) fazia sua aproximação para descida no aeroporto internacional Afonso Penna. Cerca de uma hora antes havia decolado de Congonhas, na capital paulista, com 20 passageiros e 5 tripulantes a bordo.

O que o comandante não sabia por estar com os VORs (equipamento eletrônico de navegação) desligados é que enfrentava forte vento de proa que o atrasava alguns segundos a cada quilômetro avançado em relação ao ultimo ponto de referência. Chamavam este procedimento de “voo por relógio” e exatamente a 25 quilômetros de distância da cabeceira da pista ou aproximados 4 minutos, o avião se chocou com o cume do Morro Negro numa altitude registrada de 4.635 pés.

O acidente vitimou 21 pessoas na montanha e deixou outros 4 feridos, o radiotelegrafista, um engenheiro de voo e 2 passageiros, que esperaram mais de 27 horas para serem resgatados pelos bombeiros que escalaram a montanha abrindo uma picada. Dos feridos 2 vieram a falecer em hospitais de Curitiba e 2 sobreviveram para contar a história. O curioso é que sobreviveram apenas os que foram arremessados para fora da cabine por não estarem atados às poltronas pelos cintos de segurança no momento do impacto.

A história do resgate é bem mais cabeluda. Foram tempos difíceis em que os recursos humanos e materiais eram muito escassos. O acidente ocorreu as 11:30 horas da manhã com tempo péssimo; chuva e neblina, e os bombeiros foram imediatamente acionados atingindo as encostas do Negro pela Estrada dos Mananciais onde iniciaram uma picada. Bateram facão até a exaustão e as 19:00 horas montaram acampamento para o pernoite.

Neste mesmo horário, depois de um dia normal de trabalho, alguns poucos montanhistas conseguiram se mobilizar e iniciaram a escalada da montanha por outra face, via Morro do Canal. Avançaram noite adentro ouvindo batidas compassadas na fuselagem, gritos de dor e gemidos intensos na medida em que se aproximavam. Chegaram ao local do desastre juntamente com a coluna dos militares que reiniciou os trabalhos ao amanhecer. Já havia pouco o que fazer e boa parte dos feridos morreram de hipotermia durante a noite úmida e gelada da Serra do Mar.

*****

Descem resolutos pela encosta traiçoeira tomando imenso cuidado ao passar sobre as pedras afiadas e profundas gretas que escondem as nascentes do riacho.

No vale que antecede a montanha Sem Nome foram direto a praiazinha com areias brancas lavar corretamente as feridas e fazer uma melhor avaliação dos estragos. Julio tomou um banho completo e lavou também as roupas sujas de barro. Da extensa esfoladura no joelho esquerdo vertia um líquido espesso e ardia até quando respirava enquanto do corte no cotovelo ainda corria um pouco de sangue e apenas latejava, mas já não se via o branco do osso. Sentados no barranco comeram e reidrataram com toda a calma, mas um ruído estranho lhes chamou a atenção para o interior da mata.

- Este bicho é dos grandes, pode ser uma anta!

Seguem em silencio pelas margens do riacho e penetram na mata por uma trilha de animais subindo a barranca para, estupefatos, encontrar um acampamento montado. Parecia que os donos haviam deixado o local pouco antes de chegarem e ainda os estavam observando escondidos no matagal. 

Numa elevação do terreno a pouca, mas segura, distância do riacho encontraram um toldo de lona azul esticado entre as árvores na frente de uma barraca fechada. Debaixo do toldo ainda havia uma head lamp Petzl, um fogareiro a gás e utensílios de cozinha. Num improvisado varal pendiam intactas a mochila, boné, luvas, algumas peças de vestuário e um par de botas tamanho 42 da marca Salomom. A barraca estava vazia e corretamente fechada, enquanto um par de polainas protegia os troncos de uma árvore próxima.

Tudo aparentemente em bom estado, mas sem vestígios de uso recente. Tanto o chão da clareira como as partes de cima do toldo estavam cobertas de folhas mortas carregadas pelo vento. As roupas meio apodrecidas denunciavam um bom tempo de exposição às intempéries, mas as botas é o que mais impressionavam. Apesar da aparência de novas quando examinadas mais de perto demonstravam rachaduras de ressecamento nas partes plásticas e uma fina cobertura de musgo verde já se instalava no forro interno demonstrando um ou dois anos de abandono. 

- Quem com juízo perfeito sairia andando descalço neste lugar?

Cinco horas de caminhada pesada separam o acampamento fantasma do lugar habitado mais próximo. Quilômetros forrados de espinhos eriçados e pedras afiadas, cobras, aranhas e escorpiões escondidos nas folhas prontos para atacar os incautos. Algo de terrível e assustador deveria ter acontecido naquele lugar, mais estranho é que nada demonstrava pressa ou improviso. Tudo muito bem arrumado a espera de um retorno que nunca ocorreu.

Sem sucesso vasculharam as imediações na procura de alguma pista extraviada e penetram no estranho bosque ao lado onde o vento cruzando pelos troncos eretos parece sussurrar palavras sinistras.

- Ouviu aquilo? Pareceu um chamado triste.

- É só o vento, mas parece que tem alguma coisa lá atrás. Vi algo se mexer!

- Pode ser um serelepe ou um pássaro, mas pegue o facão.

- Esqueça, já perdemos muito tempo por aqui.

Cruzaram o bosque com a estranha impressão de estarem sendo observados por algo furtivo e perigoso escondido nas sombras. Desceram uma depressão barrenta com vegetação rasteira e espessa para emergir na outra extremidade, já na base de uma larga canaleta que escala a montanha Sem Nome. 


Continua no capítulo 9 - A TRAVESSIA

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